terça-feira, 12 de abril de 2016

O dia proibido

Ando afastado do blog há uns meses mas a ele regresso a pedido de amigos que o vieram ler umas quantas vezes à procura de se identificarem com locais, subidas e sensações onde estas andanças de bicicleta nos levam.

A crónica desta vez relata um treino que fiz muito bem acompanhado, por homens com tanto de inconsciente como corajoso mas que partilham uma paixão enorme pelas bicicletas.

Nem só de sol, paisagens e sorrisos se faz o nosso desporto, ele leva-nos ao limite vezes sem conta nas ocasiões mais inesperadas, testa a nossa vontade e capacidade de sofrimento inúmeras vezes e aqueles que resistem ficam inevitavelmente com uma memória incrível para contar, partilhada com aqueles que a viveram connosco, sofreram na pele o mesmo que nós e que por essa razão tanto nos identificamos. Pois é, quando nas pedaladas mais descontraídas se contam os treinos difíceis e exigentes, as dolorosas aventuras nascem aqui em dias como este... em dias como o passado Sábado (9 de Abril de 2016).

O inverno este ano insiste em consumir a primavera e tem sido pouco amigo dos ciclistas. Haverá algo mais revoltante do que estar bom tempo durante a semana e a malta a trabalhar.... e mau tempo ao fim-de-semana quando ansiamos por ar livre e treinos exigentes?
Passamos a semana toda com ansiedade a olhar para o site do ipma, windguru, accuweather entre outros, alimentando a esperança que um deles nos traga a boa noticia que vai ser possível treinar no Sábado...finalmente pegar na bike. Desafiado pelo José Mestrinho a definir um track, desafiamos também o Tiago Cardoso e o Carlos Aguiar para um treino que teve tanto de difícil como de inesquecível.

O percurso e as dificuldades...

O plano inicial previa 130km de extensão e um acumulado (bem real) de 2800 m. Dependendo da meteorologia, do ritmo e das pernas havia uma outra versão (mais musculada) de aproximadamente 160km com mais 1000 de acumulado em cima ou seja uns 3800 m.
Com saída de Amarante iríamos subir o Marão e seguir em direcção ao Alvão, já na descida para Mondim virávamos à direita subindo pela estrada das fisgas de Ermelo em direcção a Bilhó. Aí chegados seguia-se a descida para Mondim e a tradicional e sempre desafiante Sra. da Graça. Na versão base vínhamos de regresso a Amarante pela Nacional (paralelos à Nac. 210) na versão musculada íamos subir o Velão, Alvão e de novo o Marão (pela outra vertente) para descer por fim ao ponto inicial em Amarante.

O percurso era desafiante mas nada que assuste este grupo de amigos, habituados que estão a grandes empenos (como dizemos na gíria do nosso desporto) e  habituados ainda às minhas sugestões de percurso que são sempre significado de várias horas de treino, muita subida e muitas árvores e paisagens.

A meteorologia...

Apesar da inconstância da meteorologia estavam previstas nuvens baixas, algum frio mas pouca ou nenhuma chuva até ao inicio da tarde. Pelos nossos cálculos haveríamos de escapar de uma molha ou pelo menos não levar com muita chuva nas costas durante a manha.

O dia D!

Finalmente chegou Sábado e para nossa desilusão com muito frio e uma chuva gelada. Com este panorama a tristeza e desilusão apoderou-se de nós, mesmo antes de tirar as bicicletas dos carros.
A caminho do ponto de encontro começaram as trocas de mensagens e os telefonemas já que para viver esta aventura o Tiago e o Mestrinho levantaram-se ainda de madrugada e fizeram a viagem do Porto e o Carlos (mas afortunado desta vez, veio do Marco de Canaveses).
Encontra-mo-nos num café e com ar desolado a olhar para a janela tentamos chegar a um consenso se arriscávamos a saída ou não. E se não pára a chuva? Vamos levar com isto no "lombo" durante horas? Uns mais cépticos, outros com mais vontade lá decidimos arriscar... afinal tantos dias à espera para nada?

Em pouco tempo estávamos os 4 reunidos e equipados para começar o treino previsto.

O Marão!

A subida do Marão segue pela antiga estrada nacional (paralela à A24) e serpenteia durante quase 28km pelas encostas até ao Alto de Espinho sem nunca atingir grandes pendentes, excepção feita à saída de Amarante e até virar para Padronelo onde a estrada "empina" mais um pouco mas, ainda assim, por pouco tempo.

Eis o segmento do Strava:

https://www.strava.com/segments/2080807

A paisagem vale bem a pena mesmo que hoje nos acompanhe a auto-estrada de acesso ao tunel do Marão com pontes e viadutos.

A saída fez-se já sem chuva e la fomos subindo a ritmo o Marão, a primeira subida prevista. As nuvens eram baixas mas nós fomos ter com elas e portanto a partir de 800 a 900 metros estávamos literalmente dentro das nuvens e portanto debaixo de chuva gelada e penetrante acompanhada por um frio gélido.
Terminada a subida e já reagrupados, estamos todos encharcados, no meio das nuvens a (+/-) 1200m de altitude com 1100m de acumulado nas pernas em 28km.
É aqui que nos passa tudo pela cabeça, estamos ainda no inicio de um treino com 130km previstos e já nestas condições...

Sabemos todos por experiência que o pior sitio para decidir é este, decidimos descer em direcção à Campeã e tomar decisões no vale, mais abrigado e por certo com outra temperatura.

A descida foi dolorosa, estávamos todos molhados e estava um frio que penetrava nos equipamentos e nos gelava os ossos. Se havia dias em que era melhor subir que descer este era seguramente um deles...

Tentando motivar o Tiago  repeti-lhe a minha frase habitual "se fosse fácil qualquer um fazia". O Tiago olhou-me com ar de poucos amigos e respondeu seco "só quero ir para o carro"!!! O Marão tinha deixado a sua marca, não apenas fisicamente mas principalmente na moral da malta que já estava claramente na fase de questionar porque razão se tinha metido naquilo, sensação que normalmente só acontece muito mais à frente nos treinos e não com 30km decorridos.

Nestas condições há sempre uma decisão a tomar....desço devagar porque velocidade implica mais frio ou desço depressa a pedalar porque é assim que consigo aquecer? Sou adepto da segunda opção e portanto desci rápido e com enérgica pedalada. Já na base o clima, embora mais ameno, mantinha-se agreste. Subimos a toda a brida a estrada da Campeã até ao Alvão onde decidimos que, por muita vontade que tivéssemos este não era dia para andar em altitude e que mais cedo que tarde estaríamos de regresso à zona para acertar contas que nós não somos gajos de deixar estas montanhas sem resposta.

Mas não voltamos para trás, descemos rapidamente em direcção a Mondim debaixo de um frio que me paralisava a face.
No cruzamento do Ermelo (cuja subida estava prevista para o treino) não resisti a ir conhecer um pouco da subida e ainda fiz uns 500m que me deixou com a certeza que é obrigatório la ir assim que o S. Pedro se dignar a dar-nos bom tempo. Ainda questionei o Mestrinho e o Carlos a cumprir a subida mas o Zé tremia de frio, tinha a voz aos soluços naquilo que parecia um estado de  pré hipotermia e assim decidimos seguir em direcção a Mondim com a Graça envolta em nuvens e portanto invisível à nossa direita.

Seguimos em direcção a Mondim de Basto e sem paragens, de Mondim para Amarante com o clima bastante melhor, sem chuva e com temperatura um pouco mais agradável.

Apesar de todas as dificuldades e sofrimento cumprimos 100km naquelas paisagens e juntos sobrevivemos a um dia de inverno nas montanhas com as nossas bikes. Chegamos gelados, cansados e com as bikes a aparentar terem saído de uma prova de ciclocrosse e com o meu gps e do Mestrinho a não resisterem à tormenta. Fossem eles taõ resistentes quanto os seus donos :D

Foi um dia que ficará para a minha história como ficará para a história do Tiago Cardoso, José Mestrinho e Carlos Aguiar porque sentiram na pele o que foi vivê-lo e como é bom olhar para o passado Sábado e ter uma história para contar. Não foi nada fácil, sofremos mas a história é assim feita!

Olhando para trás é quase uma visão poética ver 4 amigos a "furarem" as nuvens e o nevoeiro no alto da serra e isso vale cada soluço de frio, cada dor de pernas e cada ruga de frio nas mãos. Vale uma memória inesquécivel! Obrigado ao Tiago Cardoso, José Mestrinho e Carlos Aguiar por fazerem parte dela.

Até breve
Rui Miguel Abrantes













6 comentários:

  1. É nestes momentos que nos surge aquela questão na cabeça: "O que é que eu estou aqui a fazer????"

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  2. Não correu como planeado mas ficou uma boa história para contar! "Se fosse fácil"...

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  3. Grandes!!
    Enfrentaram o clima por puro prazer de pedalar..
    Muito bom..

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  4. Excelente relato Rui! Muito bom mesmo,dá gosto ler! Temos que planear mais voltas destas para tu teres mais crónicas ;)

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  5. Apesar do frio gélido gostei bastante de ter participado nesta aventura, mas temos que lá voltar...

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